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Articulo
Revista Universitaria de Geografía
versión On-line ISSN 1852-4265
Rev. Univ. geogr. vol.17 no.1 Bahía Blanca 2008
A geografia humanística e suas relações com o ecoturismo
Fernanda de Souza Braga* - Schirley Fátima N. da Silva Cavalcante Alves**
* Investigadora, Universidade Federal de Lavras, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC/Minas, fernandabraga@ibest.com.br
** Docente-Investigadora Universidade Federal de Lavras, Departamento de Agricultura, Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade Federal de Lavras, sfnsca@terra.com.br
Resumo
O objetivo do presente trabalho foi o de verificar, através de revisão bibliográfica, a possibilidade de se estudar o ecoturismo tendo como base alguns dos pressupostos e conceitos trabalhados pela geografia humanística. Trata também da contribuição ao planejamento e desenvolvimento do ecoturismo através da possível aplicação de conceitos tais como os de percepção, paisagem e lugar.
Concluiu-se que é necessário a consideração da dinâmica do mundo vivido e percebido tanto das comunidades que recebem o turista quanto do próprio turista, para que esta relação (comunidade-turista) não seja como uma via de mão única, bem como, a necessidade de aprofundamento destes estudos.
Palavras-chave: Ecoturismo; Geografia Humanística; Percepção Ambiental; Paisagem; Lugar.
La geografía humanística y sus relaciones con el ecoturismo
Resumen
El objetivo de este estudio fue determinar, a través de revisión de la literatura, la posibilidad de estudiar el ecoturismo basado en algunas de las hipótesis y conceptos de la geografía humanística. Es también una contribución a la planificación y el desarrollo del ecoturismo a través de la posible aplicación de conceptos tales como percepción, paisaje y lugar.
Se concluyó que es necesario considerar la dinámica del mundo vivido y percibido, tanto de las comunidades que reciben a los turistas como de los mismos turistas a fin de que la relación (comunidad-turista) no sea como una vía de sentido único, además se plantea la necesidad de profundizar estos estudios.
Palabras clave: Ecoturismo; Geografía Humanística; Percepción Ambiental; Paisaje; Lugar.
Humanistic geography and its relations with eco tourism
Abstract
The objective of this study was to determine through literature review the possibility to study ecotourism based on some of the assumptions and concepts worked for humanistic geography. It is also a contribution to planning and development of ecotourism through the possible application of concepts such as perception, landscape and place.
It was concluded that it is necessary to consider the dynamics of the present world and to understand both the communities that receive the tourist as the very tourists themselves so that this relationship (community-tourist) is not seen as a one-way street. The need of furthering these studies is stated.
Key words: Ecotourism; Humanistic Geography; Ambient Perception; Landscape; Place.
Introdução
Diferentemente do que se imagina, a geografia, em sua abordagem da paisagem, não considera somente o espaço físico ou, como nos informam os dicionários, o "que é abrangido em um lance de vista". Além das considerações clássicas da geografia sobre o sítio, a posição e as suas relações, existe uma outra abordagem possível que se refere à percepção e à imagem simbólica dos lugares1.
Essa abordagem se insere no campo da geografia humanística, que realiza estudos relativos à percepção ambiental e ao processo cognitivo dos indivíduos em relação ao seu espaço. Neste sentido, existe uma contribuição significativa da geografia ao turismo e em especial ao ecoturismo, que defende práticas mais sustentáveis para a atividade turística através da criação de uma consciência ecológica e da agregação de significados coerentes com a sustentabilidade ambiental.
Segundo Xavier (2004), a geografia tem abordado o turismo, prioritariamente, em relação a aspectos mensuráveis através de dados ou a aspectos relativos ao meio ambiente físico ou, ainda, através de uma abordagem "crítica" que estuda os impactos desta atividade sobre as comunidades locais e sobre a economia, por exemplo. Aqui nos interessa delimitar, sob o olhar da geografia humanística, o valor da atividade turística enquanto fenômeno social que deve considerar aspectos intersubjetivos e culturais, tanto na pesquisa quanto na prática do planejamento, para que se alcance uma compreensão mais humanista desta atividade, que não é e não deve ser vista meramente como uma atividade econômica, mas sim, que resulta da construção de significados e valorações socialmente organizadas.
Ressalta-se ainda, que a experiência e a visão do mundo desempenham importante papel no desenvolvimento da percepção, pois o contato direto com o ambiente permite ao indivíduo constituir seu espaço perceptivo. Através da experiência, o homem procura vivenciar e decodificar o meio em que se insere, apreende formas de ação para seu uso, sua valorização e, quando necessário, para assumir atitudes em relação a ele, pois a capacidade de assumir uma atitude frente ao mundo, segundo Tuan (1980), é formada por longa sucessão de percepções e de experiências acumuladas, ou seja, as atitudes adotadas pelas pessoas com as atividades desenvolvidas em seu ambiente espelham seus interesses, seus valores e refletem sua visão de mundo.
Isso se dá porque, também segundo Xavier (2004), os seres humanos, individualmente ou em grupo, tendem a estruturar o mundo tendo o self como centro. Com isso, o mundo orienta-se por uma série de valores irradiados da própria pessoa ou de seu grupo.
Um estudo de geografia humanística sobre o ecoturismo, deve referenciar o espaço-vivido por aquelas pessoas que, direta ou indiretamente, estão envolvidas com esta atividade, através de suas emoções, percepções, laços afetivos -também sentimentos associados a aspectos negativos tais como os de medo, insegurança e raiva- em relação aos lugares.
Acredita-se que a relevância de tal estudo está na contribuição para o desenvolvimento e posterior aprofundamento da compreensão das atitudes das pessoas nos lugares visitados tornando-se possível conhecer o valor que elas atribuem a esses lugares auxiliando, dessa forma, cada vez mais, no planejamento de atividades sustentáveis e na conscientização dos turistas, dos aspectos natural, cultural e social desta atividade, de modo a melhorar a qualidade de vida da população, manter a memória coletiva ou individual e preservar a identidade cultural e os valores desses lugares.
Por fim, o que se objetiva neste estudo é levantar, através da realização de revisão da literatura, a forma como a geografia, em sua vertente humanística, tem abordado a atividade turística em geral e ecoturística, em particular, através da utilização dos conceitos tais como, espaço vivido, lugar, paisagem e representação.
Inicialmente, realizou-se um levantamento da história de desenvolvimento da atividade turística, a partir do final do século XIX, até chegar-se ao conceito mais recente de ecoturismo, encarado aqui como uma solução menos "impactante" para a atividade turística.
A seguir, resgatou-se o contexto de surgimento da geografia humanística para, na seqüência, tratar dos conceitos privilegiados no desenvolvimento dos estudos desta vertente da geografia. Por fim, realizam-se algumas considerações em relação ao estudo do ecoturismo pela geografia humanística.
Desenvolvimento da atividade turística e o surgimento do ecoturismo
A idéia de turismo, a partir da modernidade e como entende-se hoje, desenvolveu-se, de forma mais contundente, no decorrer do século XX, com a ampliação da escala de acumulação do capital, como uma pausa no trabalho e na reprodução capitalista da vida, ainda que revestida com todo o glamour e status que os meios de comunicação possam a ela agregar.
No entanto, o aumento e a consolidação da atividade turística se justificam, ainda no final do século XIX, sobretudo pela melhora nas condições econômicas dos países europeus, graças ao processo de industrialização mais avançado e também pelas condições impostas pela jornada de trabalho que já se percebia, algumas dezenas de anos após a revolução industrial, provocar sérios problemas à saúde, inclusive mental, se exercida sem interrupções. Essa idéia passou a fazer parte do imaginário do homem moderno, ou seja, acredita-se, ainda hoje, que se pode recuperar a saúde física e mental apenas viajando ocasionalmente.
Com a diminuição da jornada de trabalho aliada a outras conquistas sociais da classe trabalhadora ampliou-se, sobremaneira, o tempo livre, o que se refletiu diretamente na multiplicação e diversificação das atividades de recreação e, com o passar dos anos, do turismo de massa.
Nesse contexto, para Coriolano (2001), o turismo é ao mesmo tempo antítese e afirmação do trabalho: "Antítese porque se trata de não-trabalho, e afirmação porquanto se trata de oportunidade de revigoramento da força do trabalhador."
Para Carlos, o lazer na sociedade moderna muda de sentido
"... de atividade espontânea, busca do original como parte do cotidiano, passa a ser cooptado pelo desenvolvimento da sociedade de consumo que tudo que toca transforma em mercadoria, tornando o homem um elemento passivo. Tal fato significa que o lazer se torna uma nova necessidade." (Carlos, 1999: 25).
De fato, a sociedade industrial gerou condições para o desenvolvimento do turismo, criando tanto possibilidades quanto necessidades mais amplas.
O turismo passa, ele próprio, a ser uma atividade econômica, principalmente após os anos de 1960, ligado à prosperidade econômica que marcou o período do pós-guerra nos países centrais do capitalismo e, a partir daí, também se massifica e se transforma em indústria.
Por apresentar crescimento vertiginoso, o turismo é chamado muitas vezes de "fenômeno" e isso se deve também, além dos fatores anteriormente citados, ao aumento da acessibilidade a uma gama cada vez maior de meios de transporte e incremento informacional, acessível através do desenvolvimento dos meios de comunicação, sobretudo, após a guerra fria, onde várias fronteiras simbólicas começaram a se diluir.
Ao longo da história criaram-se representações junto ao universo cognitivo e representacional dos indivíduos em relação ao turismo. Rodrigues (2001) nos informa que, atualmente, difunde-se uma "obrigação do preenchimento do tempo livre com atividades que acabam incorporando-se às novas necessidades do homem, criadas pela sociedade de consumo de massa, a recreação e, em particular, a viagem, são incorporadas como necessárias para a reposição de energias físicas e mentais." Torna-se cada vez mais comum ouvir queixas em relação à impossibilidade de se viajar nas férias ou mesmo feriados prolongados -"quando ficamos em casa não descansamos!"- e, na maioria das vezes, isso é verdade, pois a vida cotidiana é tão imbricada ao mundo do trabalho que parece que não paramos de trabalhar nem nas férias. Isso demonstra também o imaginário construído em relação ao turismo, principalmente nas classes mais privilegiadas onde as viagens passaram a figurar cada vez mais como sinônimo de status, pois quase todas as camadas sociais têm acesso a viagens, mas isso não quer dizer que todos tenham acesso aos mesmos pacotes e aos mesmos destinos de viagem.
O turismo é uma das atividades que produz o espaço, ou seja, valoriza uma determinada paisagem, tratando-se, assim, da produção de novas "mercadorias" (mesmo que simbólicas), que são mercadorias fugazes por não durarem mais que alguns dias ou, no máximo, o mês de férias. Com isso, acaba-se por criar ou recriar lugares nos quais os turistas se sintam à vontade e que possam voltar mais vezes.
Para Rodrigues,
"Muitos lugares que interessam para serem "vistos" por possuírem características territoriais e sociais diferentes, são transformados em lugares sociais "iguais" ou semelhantes aos da origem dos turistas. Altera-se, também, a concepção de natureza dos antigos moradores das áreas (re)produzidas pela indústria e consumo do turismo. Querem reproduzir os mesmos "costumes" dos turistas que passam a transitar por lá. Incorpora-se, para os "nativos", a noção de progresso do período moderno" (Rodrigues, 2001: 57).
Reproduzem-se os ambientes para que os viajantes sejam recebidos da melhor forma, com conforto e tranqüilidade e encontrem exatamente aquilo que procuram: bela paisagem natural e o conforto da cidade, não importa onde. Apresenta-se aqui uma outra contradição: temos que aproveitar o tempo livre para sair do local de residência, mas não queremos abrir mão do conforto que temos no local de residência. é fato que a hora do não-trabalho, destinada ao lazer não escapa das regras do mercado.
"Ao se produzir um espaço para ser consumido como lugar turístico, destrói-se, assim, as próprias condições que deram origem a esta "mercadoria" que tanto é parte da indústria como de serviços ... como todas as atividades do modo de produção capitalista, destrói as próprias condições de produção" (Rodrigues, 2001: 62).
A produção do espaço turístico se insere na produção de mercadorias de consumo. Os turistas buscam "imagens autênticas", muitas vezes, de um tempo mítico, que não mais existe ou que talvez nunca tenha existido. Isso caracteriza a "indústria" do turismo, atualmente. Para Carlos
"A indústria do turismo transforma tudo o que toca em artificial, cria um mundo fictício e mistificado de lazer, ilusório, onde o espaço se transforma em cenário para o "espetáculo" para uma multidão amorfa mediante a criação de uma série de atividades que conduzem à passividade, produzindo apenas a ilusão da evasão, e, desse modo, o real é metamorfoseado, transfigurado, para seduzir e fascinar" (Carlos, 1999: 26).
Não por acaso existem tantos simulacros de espaços originais, como boa parte da arquitetura de Las Vegas ou a Nova Jerusalém brasileira que figuram como bons exemplos disso e mundos de fantasia, concebidos artificialmente desde a sua origem, "espaços sem memória", como bem exemplifica a Disneyworld ou os inúmeros resorts que se multiplicam no litoral brasileiro.
Os destinos são comprados em pacotes pelo turista através de filtros do marketing, das agências e da promoção de gostos e atitudes que influenciam na escolha e que, inevitavelmente, ressaltam as boas qualidades e as belas paisagens e "omitem" os problemas locais como se o turista não fosse, ele próprio, responsável pela localidade visitada. Realiza-se o turismo de acordo com o que o turista pretende encontrar e de acordo com a programação feita pela agência de viagens: "os guias explicam aos turistas o que ver, o que estão vendo e escolhem o que deverão ver num programa em que a quantidade dos lugares vistos é o que importa, limitada apenas pela equação tempo/distância" (Carlos, 1999). Nesse caso, cria-se uma sensação de reconhecimento dos lugares e não o seu conhecimento, não se criam relações ou vínculos com o lugar, pois os passos são guiados por rotas preestabelecidas.
Na produção dos espaços turísticos participam diversos agentes, além dos citados acima: o Estado -através da construção de infra-estrutura e financiamentos diversos-, as indústrias - mobiliário, têxtil, utensílios, equipamentos eletro-eletrônicos, equipamentos de segurança, de camping e lazer etc.
Nem sempre se considera que tipo de turismo ou turista a comunidade local quer inserir em seu mundo. Na maioria dos casos, a população local acaba entrando no processo de produção e reprodução do espaço para o turismo pelo "elevador de serviços", pois a partir da atração de investimentos, cria-se a necessidade de mão-de-obra, o que gera trabalho e renda por um lado, mas que também acaba tirando trabalhadores de suas atividades tradicionais, tais como a agricultura, a pecuária etc., para receberem salários mínimos, que na maioria das vezes não atendem às novas necessidades criadas pelo próprio empreendimento, ou mesmo excluem a população, uma vez que esta pode ser carente da qualificação exigida. A população local ainda irá sofrer impactos relativos à degradação, carestia dos bens que também são consumidos por eles, mudança de hábitos, invasão de privacidade, entre outros. Ou seja, as relações sociais são "atravessadas" pelo turismo e requalificadas.
A partir do fim do século XX e início do século XXI, o turismo vem sofrendo transformações relacionadas a adaptação às mudanças do mundo contemporâneo. No contexto dessas transformações temos, de um lado, a revolução tecnológico-científica e, de outro, a crise ambiental, que mostra a inviabilidade do modelo de desenvolvimento trilhado e o reconhecimento da inviabilidade de todos desfrutarem do padrão de vida dos países ricos.
O ecoturismo vai surgir no contexto de novos modos de interpretação relacionados à crise ambiental, verificadas a partir de 1970, onde a natureza passa a ser entendida não só como fonte de matéria prima, mas como reserva de valores e, por extensão, também de capital, ou seja, o crescimento do ecoturismo se explica, em parte, pela importância atribuída aos valores ligados a questões ambientais e à assimilação do conceito de desenvolvimento sustentável2.
Segundo Fontes (2004) o "ecoturismo define-se como um segmento da atividade turística que utiliza de forma sustentável o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações envolvidas". Essa modalidade de turismo volta-se para as pessoas que desejam um retorno à natureza e que não se submetem ao marketing ou ao turismo de massa tão facilmente, que valorizam a melhoria da qualidade de vida da comunidade envolvida, a manutenção da qualidade do ambiente e as experiências mais significativas.
Neste sentido, o ecoturismo se utiliza da singularidade das paisagens para motivar o interesse e promover ações sustentáveis, buscando a formação de uma maior consciência ecológica, procurando minimizar os impactos ambientais, compreendendo que cada indivíduo percebe a paisagem e os lugares de forma única e que os espaços não podem ser utilizados como mercadorias descartáveis.
Na abordagem da geografia humanística, o turismo pode ser concebido como uma experiência geográfica na qual a paisagem se constitui num elemento essencial (Pires, 1999) que é percebido, não só visto. A compreensão cognitiva do espaço geográfico é tratada por Oliveira (1979), que considera seu conhecimento, além de preso ao geométrico, cinemático e físico, ligado também ao psicológico, perspectiva que, se bem considerada, oferece subsídios para um maior entendimento das interações que as pessoas estabelecem com o turismo. é a partir dessa abordagem que nos interessa continuar.
O Contexto de surgimento e desenvolvimento da geografia humanística
A geografia humanística surgiu por volta da década de 1960, como contraponto ao positivismo e à sua pretensa objetividade e neutralidade científica, proposta pela corrente teorético-quantitativa.
Alguns geógrafos defendiam que essa abordagem fosse denominada humanística, pois estudavam os aspectos que são mais distintamente humanos: significações, valores, percepções, metas e propósitos, pois para cada indivíduo, para cada grupo humano, existe uma visão do mundo, que se expressa através das suas atitudes e valores para com o ambiente e é dessa forma que as pessoas organizam o seu espaço e nele se relacionam.
Segundo Amorim Filho (1999), essa abordagem da geografia foi muito criticada, principalmente, pela corrente radical ou crítica da geografia, de matriz epistemológica marxista, sob a alegação de tender ao psicologismo, à apresentação de explicações para obscurecer as condições reais da sociedade que não dependem do indivíduo, à negação de soluções de caráter mais global e, sobretudo, ao reforço do status quo.
Em seus primeiros desenvolvimentos a fenomenologia foi tomada como a base filosófica mais adequada à geografia humanística já que propunha a retomada da "humanização" da ciência, estabelecendo uma nova relação entre o sujeito e o objeto, o homem e o mundo, além de valorizar a experiência, o comportamento e as maneiras de sentir das pessoas em relação aos seus lugares.
As maiores contribuições para a abordagem humanística vieram dos trabalhos realizados, principalmente, por Yi-Fu Tuan, Anne Buttimer, Edward Relph e Mercer e Powell. Amorim Filho acrescenta os desenvolvimentos realizados, desde os anos 1920, por Carl Sauer, J.K. Wright, W. Kirk, E. Dardel, E. Hoskins e Lowenthal (AMORIM FILHO, 1999).
Segundo Bochenski apud Silveira e Ueda (1995), pode-se distinguir dois traços fundamentais da fenomenologia3. Primeiro, trata-se de um método que consiste em descrever o fenômeno, isto é, aquilo que se dá imediatamente e, em segundo lugar, trata-se da valorização da observação destituída de mediações. Esse método possibilita que se penetre no contexto do mundo vivido, a partir do qual a experiência é construída e percebida.
Estes autores distinguem ainda as abordagens filosóficas do positivismo e da fenomenologia, em relação ao conceito de espaço:
"Muitos procedimentos geográficos convencionais supõem o conceito newtoniano do espaço como um recipiente no qual os objetos físicos e eventos recebem um lugar. Essa concepção positivista vê nesse espaço representacional uma tentativa à descrição e à análise da experiência do espaço através de categorias científicas, lógicas e matemáticas.
Do ponto de vista fenomenológico, entretanto, o espaço é um conjunto contínuo dinâmico, no qual o experimentador vive, desloca-se e busca um significado. é um horizonte vivido ao longo do qual as coisas e as pessoas são percebidas e valorizadas" (Silveira; Ueda, 1995: 50-51).
Embora possuindo raízes mais antigas em Kant e em Hegel, os significados contemporâneos da fenomenologia são atribuídos à filosofia de Edmund Husserl (1859-1939), que buscou a superação da dicotomia existente entre racionalismo e empirismo, entre sujeito e objeto. Posteriormente, esse movimento filosófico foi ampliado e vários autores forneceram subsídios importantes, tais como Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty, entre outros. Este último, segundo Amorim Filho (1999), vai repensar todas as proposições de Husserl e, além disso, ampliar alguns dos conceitos já utilizados pelos geógrafos, tais como espaço vivido e mundo percebido. Merleau-Ponty propôs, por sua vez, uma filosofia fenomenológico-existencial: "Desse ponto de vista, a consciência é vista como engajada (ou comprometida) no mundo, o que pode ser comprovado pelo estudo da percepção e do comportamento, além do espaço vivido." (AMORIM FILHO, 1999)4.
Em sua abordagem fenomenológica-existencial, pode-se dizer, grosso modo, que a geografia humanística objetiva a análise da existência5.
Note-se que, neste sentido, há uma aproximação clara com a proposta da geografia clássica francesa no que tange ao que se convencionou chamar de "possibilismo". Segundo Amorim Filho (1999), alguns geógrafos têm refletido sobre a influência da escola francesa como uma das matrizes da geografia humanística. Segundo ele, "Essas preocupações aparecem mais particularmente em certas noções e temas primordiais para a geografia francesa, como gêneros de vida, civilizações, paisagens e meio" (Amorim Filho, 1999: 78).
é necessário que se ressalte o nome de Yi-Fu Tuan, geógrafo sino-americano, nascido em 1930, um dos pesquisadores que mais contribuiu para a construção de uma nova terminologia para a geografia humanística; contribuiu também para a sua popularização, na medida em que alguns dos conceitos e categorias por ele formulados, tais como o de "topofilia" -definido por ele como elo afetivo entre a pessoa e o lugar-, paisagem valorizada, lugar e espaço simbólico, permitiram uma maior sistematização e clareza na análise do complexo processo da experiência do homem com o meio ambiente.
De forma bastante sintética, pode-se dizer que a geografia humanística, para Tuan (1985), alcança uma compreensão do mundo através do estudo das relações das pessoas com a natureza, seu comportamento geográfico, seus sentimentos e idéias em relação ao espaço e aos lugares.
No Brasil, segundo Amorim Filho (2006), a contribuição de Lívia de Oliveira para a geografia humanística -utilizando estudos piagetianos-, é de essencial importância e seus estudos, assim como tantos outros que contaram com o seu incentivo, indicam hoje três grandes direções principais:
- o aprofundamento cada vez maior do conhecimento geográfico, do ponto de vista epistemológico, para se poder explicar adequadamente nossas complexas relações com o meio ambiente;
- a ampliação de nosso compromisso com um conhecimento ético, para que as relações ambientais dos seres humanos se alicercem mais e mais na ética;
- o desenvolvimento de um conhecimento geográfico que não se fundamente apenas em uma lógica, isto é, a aristotélica que, apesar do que se pensa, ainda é dominante, mas, também, em outras lógicas que ajudem a entender melhor a complexidade do mundo e do homem que nele vive (Amorim Filho, 2006: 30).
A partir dos anos 1920, o conceito de paisagem cultural é introduzido nos Estados Unidos por Carl Sauer, no entanto, até a década de 1970, a aplicação do conceito detinha-se, basicamente, às marcas que a cultura imprimia na paisagem ou à noção de gênero de vida.
Segundo Claval (1999), a geografia em sua abordagem cultural começa a se renovar, na década de 1970, graças, sobretudo, a dois fatores: a afirmação da diversidade dos grupos de pesquisa e o trabalho de reflexão epistemológica empreendido pelas ciências sociais e pela geografia desde o início da década de 1960, denotando um nítido interesse pelo movimento pós-moderno.
Posteriormente, sobretudo a partir da década de 1980 e 1990, a abordagem se voltou para a diversidade cultural como ligação à multiplicidade dos sistemas de representação e de valores que permitem às pessoas se afirmar, se reconhecer e construir identidades. Para Corrêa, a "geografia cultural revitalizada aprofundou suas investigações no sentido de compreender a cultura como matéria-prima, mediante a qual os indivíduos e os grupos definem-se e consolidam laços de solidariedade e identidade, mas também torna manifestos os conflitos e rivalidades" (Corrêa, 2000: 51).
Segundo Claval,
"O enfoque cultural se recusa a considerar a natureza, a sociedade, a cultura, o espaço como realidades prontas, dados que se imporiam aos homens como do exterior. Julga que o mundo é mais complexo. Para mostrá-lo, parte dos indivíduos e se debruça nas suas experiências. O que lhe importa é compreender o sentido que as pessoas dão à sua existência" (Claval, 2002: 37).
Nesse sentido, o imaginário também passa a ser entendido como um elemento de construção da sociedade, manifestando-se por meio de um sistema de idéias-imagens que consistem na representação do real. Por isso, é necessário salientar que, ao lado das lógicas econômicas, políticas e sociais presentes na vida coletiva, existem outras que se circunscrevem às particularidades dos sistemas de representação, de símbolos e de signos que ligam as pessoas ao mundo e que comunicam-se entre si.
Corrêa (2000) afirma que a incorporação do conceito de representação, enquanto construção mental de uma realidade exterior percebida significou para a geografia uma verdadeira "revolução epistemológica" e se deu no contexto em que os geógrafos começavam a afastar-se de investigações, presas, estritamente, às relações comportamentais dos seres humanos com o meio, fundamentadas no princípio estímulo-resposta behaviorista.
Vale, ainda mais uma vez, ressaltar que o contexto da época em que se deu a recuperação do interesse pela cultura no âmbito da geografia distinguia-se, de modo geral, pelo questionamento dos fundamentos filosóficos e metodológicos do pensamento moderno e, principalmente por uma reação ao positivismo, uma vez que este assegurava que todas as relações espaciais podem ser apreendidas pela lógica racional e objetiva.
Ressalte-se também que, ainda que guarde alguma aproximação da geografia humanística, a geografia cultural dela se difere pela ênfase aos aspectos coletivos, aos grupos e à sociedade, buscando na noção de cultura, o sentido a partir do qual os indivíduos definem-se, criam uma memória coletiva e uma identidade mediante construções compartilhadas e expressas espacialmente -enquanto a primeira interessa-se pelo indivíduo e pelo grupo, pelos laços entre as pessoas procurando delimitar justamente o que é o mundo percebido e vivido-, embora suas perspectivas não se excluam ou antes, pelo contrário, se complementem.
A contribuição da geografia humanística ao turismo se insere, neste sentido, no entendimento dos processos cognitivos e de significação que os indivíduos criam para seus lugares. Em especial para o ecoturismo, esta contribuição é válida, pois ajuda a entender os processos de valoração e criação do sentido de sustentabilidade ambiental que se pretende alcançar neste segmento da atividade turística.
Em Rodrigues (2001), encontram-se informações sobre os primeiros trabalhos baseados na percepção ambiental -tema da geografia humanística- e relacionando-a ao turismo, como o ensaio de 1977, de Jean-Marie Miossec, que sugere uma tipologia de imagens turísticas e o capítulo de Magda F. Muscarà, em 1983, onde a autora estuda a imagem turística e a percepção do espaço de consumo do turista, Jean-Didier Urbain, também em 1983, analisa os folhetos turísticos da Tunísia, explorando os elementos iconográficos e o discurso com o objetivo de captar onde esse marketing toca no turista, seja em seus valores, seja em suas motivações, desejos e expectativas.
Por tudo isso, pode-se considerar o turismo como um fenômeno social que apresenta coerência quando considera a conduta das pessoas no meio ambiente, buscando esclarecimentos coligidos sobre fundamentos cognitivos, afetivos e simbólicos com os lugares visitados pelos turistas, que também é o mundo-vivido daquelas pessoas que os recebem.
Os conceitos da geografia humanística e sua relação com o ecoturismo
Alguns conceitos são desenvolvidos nos estudos de geografia humanística com mais freqüência. Entre eles pode-se citar o de paisagem, o de percepção ambiental, o de representação ou imagem-síntese, o de lugar e o de espaço ou mundo vivido. Esses conceitos podem ser amplamente utilizados de forma a favorecer os estudos do ecoturismo, pois são impregnados de conotações culturais e ideológicas que revelam muito sobre os indivíduos e os grupos humanos que participam da atividade turística.
O sentido do conceito de paisagem é confundido freqüentemente com a habilidade da visão, mas o seu sentido, para a geografia humanística, se relaciona com o conceito mais amplo de percepção, que pode ser definido como o processo pelo qual o organismo humano se informa dos objetos e transformações que se manifestam ao seu redor.
O ser humano percebe o mundo simultaneamente por meio de todos os sentidos. Segundo Bartley apud Rodrigues (2001), o organismo humano apresenta dez modalidades sensoriais, por meio das quais contata o mundo externo6. São eles: a visão, a audição, o tato, a temperatura, a sinestesia, a dor, o gosto, o olfato, o sentido vestibular e o sentido químico comum. A paisagem contém a energia necessária para estimular as dez modalidades sensoriais que se combinam na percepção. Cada sentido se especializa em captar uma parte da realidade. Rodrigues assim explica cada uma das modalidades sensoriais dos seres humanos, definidas por Bartley em 1978:
"Com a visão enxerga todos os objetos. A visão binocular auxilia o homem a ver as coisas nitidamente como corpos tridimensionais. Distingue a forma dos objetos, a ordem em que se sucedem na paisagem, suas cores, seus brilhos e movimentos. Através do deslocamento do observador, usando o sentido sinestésico, modificam-se as fronteiras do campo visual, os objetos mudam de direção, um eclipsa o outro, certos detalhes são perdidos, ao passo que outros são realçados. A visão é seletiva e reflete a experiência. Assim cada pessoa vê diferentemente de outra, dependendo do direcionamento da sua observação, subordinada aos seus interesses individuais. Nesse sentido a visão ultrapassa o aspecto puramente sensorial. O olfato, captando o odor da paisagem, é importante na formação da imagem e na sua memorização. A recordação de imagens da infância não raro vem acompanhada dos seus cheiros. Da mesma forma, os sons são muito importantes para a evocação de uma paisagem. Segundo Yi Fu Tuan (1980:10) somos mais sensibilizados pelo que ouvimos do que pelo que vemos. O som da chuva batendo contra as folhas, o estrondo do trovão, o assobio do vento, um grito angustiado excitam tão intensamente quanto uma imagem. Por intermédio do tato, se pode perceber a textura das coisas que vemos ao tomar contato com elas. Há dois sentidos de tato - um ativo (tocar) e outro passivo (ser tocado), ambos igualmente importantes para completar a imagem da paisagem. Por exemplo, ao caminhar por uma trilha, pisar no solo, tocar as árvores, roçar as folhas, o caminhante, movido pelo sentido sinestésico, amplia suas sensações, enriquecendo sua experiência com a paisagem.
O sentido vestibular que se localiza na parte auditiva do ouvido interno, captando a sensação de equilíbrio, é responsável pela vertigem das alturas quando se observa um precipício. A sensação térmica dada pelo contato do corpo com o sol, com a água, com o ar, é muito importante na percepção da paisagem.
Completam a percepção a dor, o gosto e o sentido químico. A dor funciona como proteção do indivíduo; o gosto, quando ocorre provar o sabor de uma fruta ou a sensibilidade da água; o sentido químico, ao ter reações alérgicas mediante o contato com alguns vegetais ou animais ..." (Rodrigues, 2001: 46-47).
A tudo isso se acrescenta a experiência individual, construída da bagagem cultural e da história de vida, de pensamentos e sentimentos, envolvendo uma visão de mundo, consciente e inconsciente, sempre subjetiva e permeada pelo imaginário. Pode-se compreender, a partir daí, porque perceber e, além disso, conceituar uma paisagem é muito mais complexo do que simplesmente ver essa paisagem.
Jordana apud Pires (1999) ressalta, ainda, que a percepção da paisagem, a partir dos estímulos recebidos do ambiente, é um ato de criação que está condicionado a três fatores, quais sejam:
- "fatores inerentes ao próprio indivíduo (forma de ser, capacidade imaginativa, mecanismos de associação etc.);
- fatores educativos e culturais imprimidos pela sociedade, condicionantes da sensibilidade e atitudes do observador; e
- fatores emotivos, afetivos e sensitivos, derivados das relações do observador com o ambiente." (Pires, 1999: 163-164)7.
Através da experiência procura o homem conhecer e vivenciar o mundo. Apreende as formas de ação para seu uso, sua valorização e, quando necessário, para assumir atitudes em relação a ele. A percepção, ao se processar, além de permitir a interação do indivíduo com o seu meio, permite também elaborarem-se respostas apropriadas às mudanças e às incertezas que o meio oferece, respostas essas que se evidenciam pela cognição e pela inteligência. Através da percepção são também criadas imagens-sínteses ou representações dos espaços onde se inserem os indivíduos.
Essas representações, ou imagens-sínteses são
"... carregadas de intencionalidade e visam a produção de efeitos na realidade social. Assim, a construção de imagens opera necessariamente com sínteses, seletivas e parciais, que dão relevância a alguns aspectos e omitem outros, respondendo ao universo especial de interesses dos sujeitos que as constroem e aos objetivos que se pretende atingir" (Sánchez, 2003: 115).
A construção destas representações ou imagens-síntese se apresenta como uma estratégia para a criação de consensos em nome de uma suposta identificação, com a intenção de atrair investimentos e estabelecer práticas espaciais. A representação e sua evocação são cheiros, sons e sensações fixados pelos turistas, imagens às vezes percebidas com inquietude e surpresa pelas populações locais. Em relação ao turismo, Miossec (1977) apud Vieira e Oliveira (2001), reconhece três grandes tipos de imagens turísticas: a global, a tradicional e a atual8. Cada uma correspondendo a uma conduta individual e/ou coletiva. A imagem global seria aquela responsável por movimentar as intenções e desejos dos turistas em direção a um destino. A imagem tradicional seria aquela que é fixada ao longo do tempo e transmitida pelos costumes e, por fim, a imagem atual seria aquela criada pela moda, pela mídia e pelos padrões de beleza da sociedade contemporânea. Na imagem atual, as aspirações dos turistas são reforçadas, mas não o conhecimento dos lugares a serem visitados.
No que tange às imagens dos lugares, há de se considerar que a lógica de apropriação do espaço pelo residente e pelo turista são totalmente diferentes. Enquanto o primeiro atribui significações aos espaços voltadas à afetividade e à memória, o segundo se relaciona através das imagens preestabelecidas daquele lugar ou pelo contato superficial com as "imagens atuais".
A percepção da comunidade receptora é influenciada por inúmeros fatores, tais como a possibilidade de trabalho, a renda, o conforto e a perda de privacidade, além do fato de ver seus bens de uso transformando-se em mercadorias colocadas à disposição dos visitantes e, muitas vezes, degradadas por eles. Sendo a percepção individual e seletiva, mas orientada também pela percepção coletiva, as respostas dadas pela comunidade serão alteradas à medida que a implantação do turismo vai adquirindo maiores proporções. Se por um lado a cultura dos visitantes tende a se impor, desagregando a cultura local, por outro, a coesão interna desta comunidade vai colocar limites a essas imposições, logo, torna-se imprescindível manter as identidades específicas que garantam às pessoas a referência ao seu lugar.
Anne Buttimer, importante geógrafa humanista, que utiliza como base epistemológica de seu trabalho a fenomenologia existencialista, chama a atenção para a visão do insider e do outsider em relação à construção de significados para os lugares. Enquanto o primeiro busca o significado do lugar através da vida cotidiana, do fazer, mais do que do pensar, o segundo descreve o lugar através de substantivos (abrigo, uso da terra, fronteira política). Neste último caso, a visão estaria relacionada ao observador que mede, mapeia e infere conclusões dentro do alcance da observação, enquanto no primeiro caso, a visão se refere ao residente, que incorpora a experiência de alcance em sua existência cotidiana.
Buttimer apud Ferreira (2002), para, a armadilha do outsider está em que ele procura ler os textos das paisagens e dos comportamentos abertos na linguagem das imagens de mapas e modelos, o que o leva a encontrar nos lugares aquilo que pretende encontrar.9 Na definição de Relph apud Ferreira (2002), o outsider teria uma atitude "inautêntica" em relação ao lugar, o que se manifestaria na ausência de sentido do lugar, não na preocupação com as expressões simbólicas dos lugares, com suas identidades sendo que esta atitude, não-autoconsciente, representa uma aceitação a-crítica dos valores de massa, ou kitsch10. Ainda para Relph, o kistch abordaria o lugar como coisa da qual o homem é alienado e onde os lugares são recriados, perdendo sua autenticidade, ganhando qualidades superficiais e sendo medido, quase sempre, pelo seu valor econômico.
O insider, por sua vez, acaba pecando por imergir intensamente nas particularidades do cotidiano e não perceber a necessidade de questionamento mais amplo da realidade do lugar. O grande desafio ao planejador de turismo, por exemplo, é buscar um diálogo entre estas duas visões.
O processo de "perda de valor de autenticidade" é definido por Relph apud Ferreira (2002) como "deslugaridade" (placelessness). Esse processo é transmitido, segundo ele, pela comunicação de massa, pela cultura de massa, pelos grandes negócios, pela "autoridade central" ou Estado e pelo sistema econômico.
Isso posto, o conceito de lugar começa a se delinear com mais clareza, como aquela porção do espaço que é dotado de significados e simbolismos. A literatura que aborda a temática do lugar revela que a identidade cultural está ligada, intimamente, à identidade com os lugares. Além disso, existem diversas formas de apreensão dos significados relacionados ao lugar: simbólica, emocional, cultural, política e biológica, por exemplo. Deste modo, as formas de associação com o lugar podem ser pessoais ou sociais, gerando uma possibilidade imensa de inter-relações.
A partir das reflexões de Relph, pode-se concluir que os fenômenos da experiência podem constituir os pólos do mundo-vivido em que o turismo se projeta: o espaço como experienciado, a paisagem como a superfície limitante do espaço e o lugar como um nó de significado em uma rede constituída no espaço e na paisagem.
Nesse sentido, as experiências do homem são valorizadas em seu meio e nos lugares visitados e, de modo especial, o sentido de pertencimento é desenvolvido, levando-se em consideração os sentimentos das pessoas, seus laços afetivos com o meio e suas atitudes em relação aos lugares.
Experienciar, também para Tuan (1980) é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. Há de se considerar que essa experiência é mediada por todo o referencial pré-concebido do indivíduo e, por isso, ele apreende a realidade local a partir de seus próprios valores e construções.
O mundo vivido ou experienciado é, acima de tudo, um espaço construído material e simbolicamente e, por isso, comunica intenções, idéias, pensamentos que são apreendidos e percebidos pelas pessoas que interagem de formas diferentes a determinados aspectos desses espaços. O mundo vivido é
"... sempre um espaço rico e complexo, que é ordenado com referência às intenções e experiências humanas, porque nele o ser humano está imerso e nele se prolonga através de suas ações, percepções e sonhos ..." (Xavier, 2004: 88).
Isso nos faz refletir sobre a posição do turista e do ecoturista, inclusive em relação à sua não valorização da comunidade local ou do ambiente natural visitado, o que o leva, muitas vezes, a degradar ou desrespeitar esses patrimônios.
Considerações finais
A produção bibliográfica dos geógrafos e também dos turismólogos que abordam os conceitos tradicionalmente desenvolvidos pela geografia humanística está publicada prioritariamente em revistas, muitas delas decorrentes de encontros onde se discutem essas temáticas. Constata-se, através do levantamento da bibliografia utilizada, que muito pouco se tem avançado nos estudos de percepção, ao qual se relacionam os preceitos da geografia humanística.
Isto posto, considera-se importante aprofundar os estudos a respeito do ecoturismo em sua relação com a geografia humanística, pois na experiência ecoturística tem-se duas situações diferenciadas: uma delas diz respeito às experiências e aos significados que o ecoturista tem sobre o lugar visitado e a outra remete a indagações sobre as relações da comunidade receptora com o turismo. Até hoje, ao que parece, as preocupações têm contemplado o atendimento aos interesses dos visitantes/turistas.
Ao considerar que o turismo e, mais especificamente, o ecoturismo, é uma atividade espacial e social, o conhecimento do mundo-vivido das pessoas que participam desse fenômeno é de fundamental importância, uma vez que muitos estudos têm abordado de forma estanque o turista e a comunidade que os recebe, ou seja, não se considera a dinâmica de interação dos indivíduos com o ambiente e entre os indivíduos. Nesse sentido, um estudo de percepção, além de expor a face mais vívida da experiência turística, tem a capacidade de mostrar o movimento e a dinâmica de envolvimento da comunidade local com o processo de produção do turismo, criando a possibilidade de valorização tanto da experiência do turista quanto a da própria comunidade.
Torna-se necessário, então, introduzir a preocupação com as questões relativas à percepção, às expressões simbólicas dos lugares e suas identidades nos planejamentos de ecoturismo, no sentido de orientar esta atividade, pois é baseado em sua percepção do ambiente que os indivíduos atuam em relação à utilização do espaço, podendo construir verdadeiros e múltiplos significados e formas diversas de experiência. Compreender a percepção do ecoturista em relação aos espaços é um ponto de partida para a compreensão do que merece maior ou menor atenção em relação ao planejamento ecoturístico junto às comunidades locais, pois esse é também o seu lugar, a sua paisagem, o seu mundo vivido e percebido e que deve ser, antes de mais nada, respeitado.
Notas
1 Lugar, categoria geográfica, é aqui entendido, de acordo com a denominação de Yi Fu Tuan (1980), como um recorte espacial com o qual as pessoas se identificam, nutrem sentimentos topofílicos ou topofóbicos e para os quais criam significados.
2 O desenvolvimento sustentável é um processo que visa ao desenvolvimento sem degradação ou esgotamento dos recursos, permitindo a sua utilização pelas gerações futuras.
3 BOCHENSKI, I. M. La Filosofia Actual. 3ª Ed. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 1955.
4 Como nos chama a atenção Amorim Filho (1999), embora com uma orientação simples e clara, as fenomenologias são quase tantas quantos são os fenomenólogos, e além de ser um dos mais importantes fundamentos filosóficos da corrente humanística, não é o único, por isso, e por não se tratar de um tema fundamental para o presente trabalho, não nos deteremos na discussão das orientações que vêem sendo dadas à fenomenologia.
5 Segundo Abbagnano, a existência, para os existencialistas é “... como o modo de ser próprio do homem enquanto é um modo de ser no mundo, isto é, sempre em uma situação determinada, analisável em termos de possibilidade ... Existir significa relacionar-se com o mundo, ou seja, com as coisas e com os outros homens; E como se trata de uma relação não necessária nos seus modos de apresentar-se, as situações em que ela toma forma podem ser analisadas só em termos de possibilidades ... As relações dos homens com as coisas são constituídas pelas possibilidades, que o homem dispõe (em maior medida em menor grau, conforme as diversas situações naturais e históricas) para usar as coisas e manipulá-las (com o trabalho) a fim de prover as suas necessidades. E as relações com os outros homens consistem em possibilidades de colaboração, solidariedade, comunicação, amizade, etc., que têm graus e formas diferentes, conforme as diversas condições naturais, sociais e históricas.” (Abbagnano, 1998: 402-403).
6 BARTLEY, S. Howards. Princípios de la percepción. México: Ed.Trillas, 1978.
7 JORDANA, J. C. C. Curso de introducción al paisaje: metodologías de valoración. España: Universidad de Cantabria, 1992.
8 MIOSSEC, Jean-Marie. “L’image touristique comme introduction à la géographie du tourisme”. Annales de Géographie, vol. 58, nº 473, 1977.
9 BUTTIMER, Anne. “Grasping the dynamism of lifeworld”. Annals of the association of American geographers. New York, vol. 66, nº 2, pp. 266-76, 1976.
10 RELPH, Edward. Place and placelesness. London: Pion, 1980.
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Fecha de recepción: 30 de abril de 2008.
Fecha de aprobación: 26 de noviembre de 2008.